sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Quarto de Pensão

Ele, o velho Nicolau Barbosa, morava em um quarto barato de pensão. Desses com paredes finas e vizinhos barulhentos. Onde até as fatias de pão, assim que retiradas da embalagem, ficavam velhas quase que instantaneamente. Se prestássemos atenção, seria possível perceber tudo, dentro daquele quarto, envelhecendo mais rápido. Inclusive o velho Nicolau, com seus 64 anos, cabelos grisalhos e rosto cansado, também envelhecia mais depressa lá dentro.
Fora do quarto levava no rosto sempre um sorriso, quase sincero e uma tristeza praticamente imperceptível. Só os mais atentos perceberiam, no canto de seu olho esquerdo, uma lágrima, sempre presente, mas que nunca caía. Resquício da solidão do quarto de pensão.
Talvez por isso seu sorriso não era inteiro. Uma pequena parte dessa sinceridade, engasgava, presa em um insolúvel nó na garganta. Mas ao menos, sorria. Para afastar o azar, por disfarce, por não querer que tudo piorasse.

***
Certo dia, chegou em casa cansado do trabalho, sentou-se na beira da cama, de frente para a televisão, lembrou-se do temporal da noite passada e torceu para que tudo ainda estivesse funcionando. Não estava. Sem sucesso, tentou ligar a tv, depois o computador. Esse, piscou - como se, por pura provocação, jogasse um último fio de esperança - e se apagou.
Uma tristeza, quase insuportável, invadiu-lhe o peito naquele momento. O velho Nicolau, já cansado de tudo, ascendeu um cigarro e deu algumas tragadas enquanto olhava para a televisão desligada. Depois de algum tempo levantou-se, colocou o que restava do cigarro escorado em cima de um rolo de papel higiênico e saiu sem olhar para trás.
Foi até o bar da esquina, pediu uma cerveja e esperou. Dez minutos depois, já era possível ver as labaredas de fogo saindo pelas janelas da pensão. Enquanto todos corriam para salvar alguma coisa, mulheres gritavam por ajuda e vizinhos curiosos acumulavam-se aos montes, querendo saber como tudo aquilo havia começado, ele, calmo como uma bomba relógio, ficava sentado em uma mesa amarela de plástico, bebendo cerveja e observando aquele movimento todo.
Três ou quatro garrafas depois, pagou a conta e foi embora. Sem nem mesmo saber para onde ir.
No caminho, ainda escutou uma vizinha comentar que todo o bairro havia ficado a tarde inteira sem luz.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Cineminha

Engana-se quem pensa que, no meio do filme, deve-se fingir aquela espreguiçada, passar o braço em volta da "pequena" ao lado e tascar aquele beijo, fazendo barulho e atrapalhando as pessoas.
Segundo as dicas de uma colega de trabalho, existem passos a se seguir, afim de criar a oportunidade certa para o tão desejado, e por que não dizer, clichê, beijo no escurinho do cinema. Aqui tratado com um dos primeiros de um jovem casal em campanha.
Este, beijo do qual tratamos, só não é o primeiro porque pela regra — confere Arnaldo? — cinema é coisa de segundo encontro. Fato esse sabido desde os primórdios da humanidade, quando Adão chamou Eva para assistir as quedas d'água recém formadas pelo Criador. Deve até estar na Bíblia.
Para os desatualizados de plantão, reza a lenda que um primeiro encontro deve ser marcado em um barzinho, pub ou coisa que o valha. Um ambiente bonitinho, que tenha ao menos uma mesa, de preferência não muito grande, duas cadeiras e, fundamentalmente, bebidas alcoólicas. Calma! Não estamos falando de embriagar a moça, nem nada do gênero. Mas sim, algo para quebrar o clima desconfortável de um primeiro contato. Depois disso, é só não cagar tudo falando da "Ex" ou de "como nunca conseguiu viver com uma mulher só", que tudo vai dar certo. Talvez.
Mas, voltemos ao cinema.
De praxe, escolhe-se um filme do qual você não precise ver todo. Nada de mega lançamentos da Marvel ou filmes muito românticos. Nesse último, há boatos de que até a hombridade do sujeito é posta em dúvida. Por isso, 9 entre 10 especialista recomendam que se chegue ao cinema com o filme já escolhido.
É importante ter ciência de que, nesta hora, qualquer demonstração pública de afeto pode significar quase um pedido de namoro e revelar, de cara, a afobação da criatura. Portanto, nada de beijinho na escada rolante ou na fila do refrigerante. Segundo o manual — sim, há um — o casal, na categoria de base dos relacionamentos, entra no cinema ainda sem dar as mão.
Contudo, é esse, o da entrada na sala de cinema, talvez um dos momentos mais importantes da noite. É de suma importância — SUMA im-por-tân-cia — que, ao indicar o local onde o casal sentará, ele coloque a mão, levemente, sobre a cintura dela, quase como um meio-abraço. Fato que, segundo pesquisadores da Universidade do Interior do Alegrete, contribui de forma substancial para criar o clima perfeito para o beijo que deve acontecer um pouco antes do filme começar. Quando os dois, sem ter o que fazer, se olham ainda meio sem jeito.
Acredite, se passou por esse momento e não tascou-lhe um beijo na moça, dormiu no ponto. Aliás, não dormir é uma ótima dica do que fazer quando ir ao cinema.
Na saída, agora sim de mãos dadas, pode parecer cedo, mas é hora de decidir o futuro da relação. Se, agora, aos 45 do segundo tempo, percebeu que entrou em uma furada e não vê a hora de se livrar da dita cuja ao seu lado. Elegantemente (tudo é classe), dirige-te à praça de alimentação do shopping e para na fila do primeiro fast food que encontrar, enquanto olha, com um ar preocupado, para o relógio. Fim de jogo.
Por outro lado, se tudo deu certo e você já começa a considerar a hipótese de largar a vida de solteiro, corre para o Japonês. Testes em cobaias revelaram que o tal do restaurante japonês é o Pelé dos "Segundos Encontros". É batata. Tiro e queda. É levar a prenda lá e correr para o abraço.
Segundo minha colega, estas são dicas "quentíssimas". Praticamente infalíveis, com uma margem de erro de dois pontos percentuais, para mais ou para menos. Não as coloquei em prática ainda por detalhes técnicos, mas tenho a absoluta certeza de que darão certo. Ou não.

sábado, 15 de setembro de 2012

Velho e Louco

Envelhecerei. Resmungarei sozinho pelos cantos  e esbravejarei todos os dias contra um "eu" imaginário e ainda jovem. Lhe perguntarei, um milhão de vezes: "Que diabos estava pensando?".
Sentarei em cadeiras de balanço, coçarei minha barba branca e gritarei, velho e louco, com pessoas que não estarão lá.
Em minha insanidade caduca, chorarei sozinho e no instante seguinte darei gargalhadas, lembrando da vida que tive e que por vezes esqueço.
Olharei no espelho e verei nas rugas apenas um rascunho do que outrora fui. Então, em mais um devaneio desta velhice insana, meu "eu jovem" reaparecerá sorrindo ao meu lado e aos berros lhe indagarei: "Criança estúpida! Que diabos estava pensando? Para quê amar tanto? Custava fingir? Ser mais simpático? Mais normal?".
E ainda com um sorriso no rosto, esse eu mais novo me dirá, pela milésima vez: "só assim seria você mesmo" e desaparecerá enquanto coloco a pasta na escova de dentes.
"Obrigado. Eu sempre esqueço desta parte" - Pensarei enquanto escovo meus dentes falsos, lambuso minha barba velha e esboço um sorriso simpático no rosto.
Envelhecerei. E mesmo velho e louco, ainda ficarei contente por ter sido eu mesmo.




terça-feira, 14 de agosto de 2012

Fim de Noite

Saiu do bar cruzando os passos e esbarrando em cadeiras. Entregou a comanda paga e resmungou algumas palavras que homem da portaria, atrás de um bigode branco e escondido dentro de uma jaqueta de couro duas vezes maior que ele, sequer compreendeu. 
Deu mais alguns passos, sentou no cordão da calçada e gritou: “Garçom! Uma bebida, por favor!”
A noite já estava acabando, uns caras que 
bebiam por perto olharam e riram daquela estranha sentada na calçada. Tinha os cabelos loiros e desarrumados, o rosto borrado, o vestido sujo de vinho mas, apesar de tudo isso, ainda parecia bonita. Mesmo escondidos atrás do negro rímel, seus olhos verdes sempre encantavam.
Gritou por bebida mais uma ou duas vezes. Não conseguiu nada além de mais risos. Baixou a cabeça, olhou para as pertas já pálidas com o frio e pensou que há certas noites que são frias demais. Essas noites começam congelando os pés como qualquer outra noite fria, mas não param por aí. E não importa quantos casacos, meias ou calças você coloque, há certas noites que são frias demais. Mas é um frio estranho. Esse frio que deixa tudo cinza. Que gela a alma e aperta o coração. É um frio diferente, que independe do número de roupas ou cobertores que você usa. Tem mais a ver com o número de pessoas a sua volta. E não é qualquer tipo de pessoa. Só aquelas que se importam com você. Quanto menos delas, mais frio se sente. E os casacos ao invés de esquentar, sufocam; apertam e tudo que você consegue sentir por eles - e por todas as outras coisas do mundo - é uma raiva apertadamente sem motivos, mas que consome, que vibra e grita mais alto do que sua própria voz poderia. Há certas noites, como essa, que são frias demais e só o que se deseja é não estar sozinha nesse frio. Mas geralmente, se está. “Uma bebida por favor!” - gritou mais uma vez.
Levantou da calçada e fez sinal para o primeiro taxi que apareceu. “Avenida Oitenta e Três, número oito, tio.”
Abriu o portão do prédio, passou pelo hall, entrou no elevador apertado - pequeno demais para um edifío daquele tamanho - e apertou o dez. Escorou a cabeça na perede do elevador e olhou sua imagem no espelho. A respiração fez com que o vidro ficasse embaçado. Levantou o braço esquerdo e desenhou um rosto feliz no lugar do seu. “Sorrisos falsos para reflexos falsos. Como lá fora.” - falou enquanto a porta se abria e ela revirava a bolsa procurando as chaves do apartamento.
Esbarrando nas paredes, entrou, jogou os sapatos em um canto, a bolsa em outro e serviu mais uma dose de uísque, sem gelo. Enquanto bebia foi para a sacada. Já começava a amanhecer. Passou os pés por cima da mureta e sentou-se alí, com o uísque na mão e os pés balançando ao vento, no alto dos dez andares. Dalí vía-se quase toda cidade.
Olhou para o terço de sol que já havia nascido e sorriu. Talvez o único sorriso sincero da noite. Da semana. Do mês. Da vida.
Seu rosto trazia a expressão cansada de horas de bebedeira, mas seu olhos íam além. Pareciam vazios, sem brilho.
Pensou nas contas pra pagar, no emprego de merda, no chefe cretino e nos poucos amigos esquecidos. O que lhe incomodava não eram os convites não feitos, mas sim os feitos da boca pra fora. E havia muitos desses. Imaginou já estar cansada de tantos sorrisos falsos, de gente que defende o sim, mas só usa o não e de tantos livros julgados só pela capa. Bebeu mais um gole, largou o copo na mureta da sacada e sorriu mais uma vez.
“Por que não?” - falou, ainda com o sorriso nos lábios.
E pulou.

sábado, 24 de março de 2012

A Anfitriã

Ainda sozinha, arruma todas as coisas para a festa. Não que a festa seja algo muito importante, mas mesmo assim confere tudo pela milésima vez. A bebida no congelador, os copos comprados especialmente para essa noite, o som, a luz. Tudo neuroticamente ajeitado para que todos se sintam bem em sua casa. Todos foram convidados com um sorriso no rosto para que, desde o princípio, nada saia errado. Sempre fora gentil. Sempre se preocupou ao extremo para que tudo estivesse detalhadamente certo. Agora não seria diferente.
Há algo nessa garota que parece estar sempre escondido. Uma mágoa, uma dor. Se esforça ao máximo para que as pessoas gostem dela. Há nela uma súplica silenciosa, que implora aos sussurros de olhares a aprovação de todos. A mera alusão ao desagrado alheio lhe espanta tanto que chega a sentir o peito apertar cada vez que pensa nisso. Assombra-lhe imaginar que, por qualquer motivo, alguém possa não gostar dela.
Em meio a sorrisos, histórias e bebidas todos riem. Riem alto. Alto demais. No andar de cima, seus pais já brigaram com ela uma dezena de vezes durante a noite. É tarde. Ela olha em volta, tudo gira, as pessoas conversam alto. Cercada, sente-se sufocadamente sozinha. Talvez pela bebida, talvez por não aguentar mais essa estranha dor que carrega, esse estranho vazio que desde outrora habita seu peito e que tentara a noite toda encobrir com sorrisos, ela explode em lágrimas. Aos soluços tem que mandar todos embora.
Qualquer um em seu lugar diria algo como "Ok, pessoal. A festa acabou!". Ela não. Ela chora e pede desculpas. Só consegue pensar no que irão achar dela no dia seguinte. E ao pensar nisso, chora mais. Cada um que passa pela porta leva junto um pedido de perdão. Cada um que passa se importa menos. Os olhos dela parecem temer a solidão que inevitavelmente segue e suplicam: "Por favor, não me odeiem". É como se cada pessoa que vai embora arrancasse um pedaço daquela aprovação que tanto necessita. "Por favor, não me odeiem".
O último convidado vai embora. Ela fecha a porta e senta nas escadas, sozinha no escuro de seu pesadelo particular, esfrega os olhos, remove o resto da maquiagem que resta e, pensando nos que saíram, pede desculpas mais uma vez. "Por favor, não me odeiem".

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Trem das Seis

Nada como pegar um trem lotado às 18h de um dia de verão. Como se não bastasse o calor infernal da rua, dentro dos vagões ele era maximizado pela aglomeração das pessoas. A maioria voltando do trabalho. Espremendo-se em centímetros quadrados, sofria-se para entrar, para sair, para ficar.
Suores e odores dos mais variados deixavam o ar carregado, denso, difícil de respirar. Pessoas que traziam nos rostos a expressão do cansaço estampada. Em um cenário quase sem cor, notava-se de olhar em olhar um tom de tristeza pairando, espreitando, como se fosse crescendo a cada estação em que o trem parava e mais um punhado de pessoas embarcava.
De um lado, sentados lado a lado, alguns pareciam ensaiar uma espécie de dança. Um balé sincronizado de olhos fechados e balançar de cabeças no ritmo do chacoalhar do trem. Vez ou outra, um destes abria os olhos para verificar em que estação estava, mas rapidamente fechava como que para fugir daquela realidade.
Do outro lado, outros reclamavam. Do calor, dos passageiros, da vida. Alguns, entretanto, pareciam seguir o percurso todo em universos paralelos, alheios aquele caos, vezes com fones de ouvido, vezes com pensamentos e devaneios. Contudo, ambos com o mesmo olhar distante e profundo que ia muito além das janelas dos vagões.
Parecida com tal, era a expressão de uma senhora idosa sentada junto à janela. Com os cabelos grisalhos, pele enrugada e - apesar do calor - roupas de lã. Ela parecia a minha avó ou a avó de um amigo. Tinha a expressão comum, doce, bondosa e clichê que toda avó tem.
Porém, diferente dos outros, seu olhar não era vago, nem as expressões de seu rosto eram tristes e cinzas como as demais. Ela olhava encantada para a rua enquanto o trem se aproximava do aeroporto. Quando, ainda de longe, enxergou a ponta de um avião subindo e rasgando o céu como um gigante alado, percebia-se claramente em seu rosto a surpresa, o estranhamento e a alegria de algo visto pela primeira vez. Quanto mais perto, mais arregalados seus olhos ficavam. Sussurrado entre seus sorrisos, ela deixou escapar um “Meu Deus”, como se o que via fosse um milagre do próprio.
Ali, sentada anexa a todo o caos, calor, desconforto e confusão, estava aquela senhora, sorrindo e achando aquele o melhor lugar do mundo.
Eu? Sorri também.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Lágrima de Festa

Escova os cabelos negros e lisos na frente do espelho. Pinta os olhos e o olhar, já normalmente triste, ganha um ar ainda mais sombrio que contrasta com o sorriso inegavelmente bonito. Mesmo assim, com certo desagrado pelo que vê, se olha no espelho uma última vez antes de sair para uma festa qualquer.
A verdade é que ela é infeliz o tempo todo. Há quem diga que isso é impossível, mas o fato é que mesmo quando sorri, algo dessa dor que carrega ainda está lá escondido, esperando. É como quando se está chorando e alguém fala algo engraçado e, mesmo com o rosto ainda cheio de lágrimas, você esboça um sorriso, mas nada mudou. Apesar do sorriso passageiro as lágrimas ainda demorarão muito para secar.
Parece estranho. É algo que ela não consegue explicar, que lhe pertuba. Uma sensação de vazio e um constante nó na garganta, quase como um grito abafado que nunca se liberta.
Mesmo rodeada de amigos, música, sorrisos e bebida – muita bebida – ela não consegue se conter e, talvez até por culpa dessa última, no meio da festa uma lágrima em fuga escorre-lhe o rosto. Rebento desgarrado de um poço de outras tantas. Gota que foge em um momento de descuido, forçada pela leveza da embriaguez, a visão do ser amado com outra, por lembrar de algo. Tanto faz.
Quando um estranho vem e lhe pergunta se está tudo bem, já nenhuma outra corre o risco de deixar-se escapar. É como se o elástico que prende a máscara responsável por esconder sua tristeza tivesse escapado de repente e parte de sua dor se tornasse visível por alguns instantes. Como disfarce, distribui alguns sorrisos tímidos para reafirmar que está tudo bem. Toma mais um ou dois goles da primeira bebida que enxerga, ganha fôlego e tudo volta a ser como de costume. Feliz, para quem vê, mas infeliz o tempo todo.